Alceu, 70 anos de muita “gréa”

Alceu, 70 anos de muita “gréa”.

Alceu, 70 anos de muita “gréa”.

Alguns Pernambucanos tem um pouco desse jeito “maloqueiro” meio “doido-de-atirar-pedra”, de estar apaixonado ao mesmo tempo que “arengado” com os amigos e com a própria terra.

Vive a fazer piada e esculhambar com tudo na mesma pisada, num sarcasmo cheio de manha, difícil de resumir em outra expressão que não seja a tal da “gréa”. Quem sabe logo estará registrada no Aurélio acompanhada do verbo grear e suas conjugações?

O espírito da “gréa” é uma constante em várias manifestações folclóricas e em todas as linguagens do meio artístico local. Na música, talvez não haja outra figura de sua geração que melhor represente esse espírito, que o “cabra” que hoje completa seus 70 anos.

Controverso que só ele, Alceu Valença é essa mistura que nem ele mesmo consegue explicar muito bem, e do qual não se pode cobrar lá muita explicação mesmo.

É sem dúvida, um dos grandes cantores e compositores de seu período junto com outros nomes do Nordeste como Fagner, Belquior, Ednardo, Moraes Moreira, Elba e Zé Ramalho e Geraldo Azevedo.

Deu meia noite / são dose em ponto
Deu meia noite / são dose em ponto
Deu meia noite na noite / são dose em ponto

A lua cheia clareia os quatro cantos
A lua cheia clareia os quatro cantos

Prá ver quem vem passar descendo a ladeira /
Prá ver quem vem passar fervendo a chaleira!

O Homem da Meia-noite – LP Asas da América (1979) –

Nos versos acima, que Alceu homenageia um dos maiores símbolos do nosso carnaval, ele nos mostra de uma só tirada do que é capaz com sua voz rasgada e malemolente, de dicção rápida e potente.

Uma síntese de características comuns de muitas de suas referencias locais: os emboladores e repentistas, os velhos do pastoril profano, e os cantores de forró e frevo. Sua interpretação também leva a cabo esse espírito da “gréa”, ainda que Alceu tenha muitas outras facetas entre sua vasta discografia.

 

A história do homem

Alceu Paiva Valença nasceu no dia 1 de julho de 1946 em São Bento do Una, cidade entre o Agreste e o Sertão de Pernambuco. Desde os poucos anos já teria contato com a métrica e a energia dos cantadores de feira, e com a genialidade de Jackson do Pandeiro e Luiz Gonzaga. Além da influencia direta de seu avô, poeta e violeiro.

Conta Alceu que seu pai, ao ver que o filho já tinha toda a verve para artista, decidiu não ter vitrola em casa pra ver se o menino desistia da ideia. Mal sabia ele que de pouco adiantaria.

Aos 10 anos vai morar com a tia em Recife, onde conhece outras coisas pelo rádio. De Orlando Silva e Dalva de Oliveira, a influencias internacionais como Ray Charles, Little Richard e outros nomes do Rock’n Roll.

Nos anos 1960 Alceu se encontra com o Rock psicodélico e com todo o cenário lisérgico e de desbunde que se formava em Recife. Gente como Zé Ramalho, Lula Cortes e a rapaziada do Ave Sangria não só fizeram parte de sua banda como escreveram páginas fundamentais na música do estado e do Brasil.

De temperamento forte e às vezes explosivo, Alceu coleciona “pelejas” desde estes tempos. José Teles nos conta em seu livro ¨Do Frevo ao Manguebit¨ que durante seu show, havia uma pausa em que Ze Ramalho tocava algum de seus temas enquanto Alceu descansava.

Nesta noite, todos já muito inebriados de música e otras cositas más, Zé decidiu tocar uma música que, até então, só quem tinha escutado era o baterista Israel Semente. Era Chão de Giz, que foi ovacionada pelo público.

Na saída pro camarim, Zé Ramalho ainda eufórico com a reação da platéia, se encontra com Alceu que lhe dá uma bronca por nao ter tocado a música combinada. Ressentido, Zé volta ao palco quando a banda e Alceu recomeçava o espetáculo. Em um único golpe, que coincide com o primeiro acorde da banda, quebra seu violão na beira do palco. Para o espanto da banda e delírio do público, que não se dá conta do protesto e o incorpora ao espetáculo. Dali por diante, e graças ao esporro de Alceu, Zé Ramalho decide tomar as rédeas de sua carreira solo.

Alceu se formou, em 1969, pela Faculdade de Direito do Recife. Depois de trabalhar como advogado e jornalista, em 1971, foi ao Rio tentar a vida como músico com Geraldo Azevedo.

Lançam juntos o LP Quadrafônico (1972-Copacabana Discos). Em 1974 atua no filme A Noite do Espantalho, para o qual também assina a trilha sonora com Sergio Ricardo. Ainda em 74 lança seu primeiro LP solo Molhado de Suor (1974 som Livre). Deslancharia sua carreira nacionalmente com a faixa Coração Bobo, do disco homônimo (1980 Polygram).

Nos anos 80 teve talvez seu auge, com um recorde de álbuns lançados e um conjunto de sucessos em que a mistura de forró com Rock (muito antes dos Raimundos), e do baião com o reggae já são muito presentes:

Da manga rosa quero o gosto e o sumo
Melão maduro, sapoti juá
Jaboticaba deu olhar noturno
Beijo travoso de umbú-cajá
(…)
Morena tropicana
Eu quero teu sabor

Tropicana Lp Cavalo de Pau 1982 Ariola –

Como não poderia deixar de ser, os versos acima têm sua versão popular durante o carnaval, numa típica “gréa” das ladeiras. Quando entoado pela orquestra, o refrão é logo parodiado:

Morena traga a cana
que a cerveja acabou!
Ôiôiôiô!

E talvez em seguida a orquestra toque outros clássicos do artista para a folia de Momo: Bicho Maluco Beleza que compôs pro seu bloco de carnaval, e também Diabo Louro.

Mas Olinda onde vive Alceu, não é só carnaval. Durante o ano, o sítio histórico cultiva sua aura própria entre os muitos artistas que ali vivem, as resenhas entre suas ladeiras e estórias de amor, e a vida boêmia.

Alceu eternizou em algumas músicas esse espírito, já em arranjos mais malemolentes, em que se vê a influência negra com a levada do afoxé como nas belíssimas Anunciação e Olinda e do Reggae como na lasciva Como os Animais. Algumas destas mescladas com roupagens pop de guitarras e teclados muito ao estilo dos anos 80.

Os anos 90 começaram intensos para o artista. Foi acusado de trair suas convicções políticas que seriam historicamente de esquerda. Momento duro, como o próprio comenta, que chegou a infartar com as pressões.

Apesar de produzir menos discos que a década anterior, lança sucessos como “La Belle de Jour” e a já mencionada “Bicho Maluco Beleza”, ambas no LP 7 “Desejos”, em 1992. E logo viria “O Grande Encontro”, álbum lançado em 1996 que rendeu uma turnê nacional em parceria com os antigos parceiros Zé Ramalho, Elba Ramalho e Geraldo Azevedo.

Alceu segue produzindo e lançando discos. Em 2014 gravou com a Orquestra Ouro Preto o álbum “Valencianas”, além de dois ao vivo entre 2003 e 2006, e o álbum “Ciranda Mourisca” em 2009.

Em meio a tanta produção ainda encontrou tempo pra dirigir um filme lançado em março de 2016, depois de mais de 40 anos de seu primeiro contato com a sétima arte. Refletia sua própria visão sobre o cangaço, no longa-metragem “A Luneta do Tempo“.

São 70 anos muito bem vividos, que pelo jeito não param por aqui! Vida longa e de muita “gréa”! O público agradece.